TODOS VAMOS MORRER UM DIA
É a única certeza que temos na vida. Mas por que não se fala sobre isto? A temática ainda é um tabu na nossa sociedade. Um assunto velado, omitido nas rodas de conversas, principalmente familiares. Para o idoso a morte é uma certeza. Faz parte do seu ciclo de vida. Ela poderá acontecer em um, cinco, dez, vinte anos. Não importa o tempo, mas ela está muito mais perto que o nascimento. É difícil pensar na nossa própria morte, nas incertezas do que ela é, em como ela vai ser e no que deixaremos aqui. Mas ela é inevitável, e falar sobre ela é um grande passo para desmistificá-la.
Antigamente se falava mais sobre isto. Era considerada um evento normal. Se morria em casa, próximo de familiares. Hoje, na maioria das vezes, se morre no hospital, com poucas pessoas ao redor, muitas vezes em leitos solitários de UTIs, e procura-se sempre algum culpado para ela: “morreu de derrame, do coração, de pneumonia, de câncer, etc…”. Durante o tempo que antecede a morte, existe frequentemente uma conspiração de silêncio, onde as pessoas próximas, mesmo percebendo que está para acontecer, não falam ou se esquivam do assunto, o que faz com que surjam angústias e medos, muitas vezes infundados. Muitos idosos, seja por adoecimento ou pelo percurso inevitável do tempo, vão diminuindo suas reservas funcionais, ficando debilitados de forma progressiva e, em muitas ocasiões, irreversíveis, tornando-se menos independentes, necessitando de ajuda para tarefas antes cotidianas, que vão desde a capacidade de caminhar a se alimentar, mostrando que a morte está se aproximando, mas mesmo assim, há muitas vezes diálogos de que “isto é passageiro”, “logo tudo vai ficar bem”, “não vamos falar sobre a morte”, o que gera angústias e inseguranças por parte da pessoa que está passando por esta fase.
No consultório, durante as consultas, é frequente o idoso falar sobre a morte, nem que seja de uma forma superficial ou como uma forma de dizer que ela existe. Palavras tipo: “Um dia a morte vai chegar para todos”, “Minha mãe morreu aos 82 anos. Eu tenho 78 anos agora. Será que chegarei na mesma idade que ela?”, “Sou viúvo.”, “Só sobrou eu de sete irmãos.”, “Eu não tenho medo da morte, tenho medo de ter uma doença que me deixe numa cama dependendo dos outros.” São frases que, de uma forma ou de outra, está chamando a temática para o diálogo. Na maioria das vezes estes diálogos ocorrem diante de familiares presentes, como :“Sei que vou morrer daqui a um tempo.”, e frequentemente, os filhos, de forma muito errônea, interrompem o diálogo e falam: “Não mãe, você está muito saudável. Não vamos falar sobre isto.” Ou “Isto vai demorar muito tempo”. Por que não falar sobre isto? É a deixa para o idoso expressar algo que gostaria sobre isto. Em vez de bloquearmos sua fala, o ideal é falar: “Vamos falar sobre isto.” Ou “O que você deseja falar sobre isto?” Coibir ou mascarar o tema, além de constranger o indivíduo, faz com que este se sinta inseguro, muitas vezes crendo que seus entes queridos não estão preparados para vivenciarem este evento ou de que a morte é algo ruim.
A morte é um fenômeno único e individual, podendo chegar de surpresa (como em um infarto ou um acidente de trânsito) ou lentamente (como em uma doença crônica como câncer ou o próprio envelhecimento) e não tem como se ter certeza de quando e de como ocorrerá. Não tem como saber. Quando me pedem quanto tempo de vida alguém vai ter, eu digo que não sei. Minha mãe teve um câncer de mama, o tempo de vida médio dela, segundo os livros, seria de 6 meses. Ela viveu mais 6 anos. E se tivesse vivido apenas 3 meses? As estatísticas podem atribuir uma média frente a muitas pessoas que vivenciaram tal situação, mas cada caso é único.
O diálogo deve ser sempre primeiro buscando as perguntas que o idoso tem sobre o fato e, a partir daí, costurando os temas que virão. Não há por que fazer grandes explanações e teorias sobre o que ele não quer saber. Assim como um adolescente que quer falar sobre o que está pensando sobre a fase da vida que está passando, o idoso tem esta necessidade, devendo os entes queridos e profissionais que atendem esta pessoa estarem abertos à temática. Isto auxilia muito no processo de um envelhecimento mais saudável e de uma vida concluída, sem ficar nada para trás sem ter sido dialogado, reparado ou enaltecido. A vida tem que ser como um livro que precisa ser escrito seu final e que a história se encerre concluída e não deixar algo em aberto, mal resolvido ou inexplicado.
O idoso apresenta dúvidas, angústias e expectativas sobre a sua morte. “Como meus familiares ficarão sem minha presença?”, “Há algo após a morte?”, “Será que vou sentir dor antes de morrer?”, “Será em casa, numa casa geriátrica ou no hospital?”, “Quem vai cuidar do meu cônjuge?”, “Como será meu velório?”, “Que roupa vão colocar em mim?”, “Prefiro ser enterrado ou cremado?”, “Como fazer para me despedir de todos que amo?”, “Como fazer com que meus filhos dividam meus bens sem terem atrito ou discussões?”, “Será que vão sentir minha falta?”, “Tenho algo para realizar antes de morrer?”, “Será que vou conseguir partir em paz, tendo me desculpado de Fulano, a quem magoei?” , “Se estiver num hospital, quero que me coloquem numa UTI ou que apenas me cuidem para não sentir nenhum sofrimento num leito da enfermaria, com meus familiares, em Cuidados Paliativos?*” Hoje é inaceitável para a medicina que um indivíduo sofra durante seu processo de morte. Existem muitas alternativas, das quais podem ser feitas no ambiente domiciliar, para amenizar sofrimentos que alguns indivíduos (não todos, pois não há por que dizer que para morrer precisa-se sofrer, isto é um mito) possam apresentar. É inaceitável morrer sentindo dor com tantos recursos para sanar isto, não apenas medicamentosos, mas com terapêuticas multidisciplinares que aliviam este sintoma. E além da dor física, precisamos tratar a dor social, emocional e espiritual, que contemplam a chamada dor total que o indivíduo pode apresentar em sua vida e no seu processo de morte e morrer.
Se você deseja falar sobre a morte, o ideal é falar abertamente sobre isto com seus familiares e com os profissionais de saúde que atendem pessoas que estão em processo de finitude da vida. Expresse o quanto isto será importante para você. Caso se sinta inseguro em dialogar diretamente, escreva uma mensagem, no celular ou escrita, e envie a quem deseja abordar sobre o tema, sobre suas impressões a respeito da terminalidade da sua vida, seus anseios, desejos, indagações, explanações e sentimentos. É uma alternativa. Uma vez uma paciente disse que, para iniciar o diálogo em casa, falou, como os adolescentes falam: “Minha amiga ontem falou sobre a morte dela com seus filhos. (Na verdade não tinha amiga que fez isto, foi um jeito de puxar conversa). Achei interessante e gostaria de falar com vocês, quando estiverem preparados.” Outra me relatou que disse em tom de humor: “Minha filha, preciso planejar com você sobre meu velório, pois quando eu morrer não vou poder lhe dizer.” Para exemplificar mais um caso, o filho de um paciente me relatou que o pai deixou um dia na sala um trecho de um texto que falava sobre morte, propositalmente para ele ler e puxar o assunto com ele.
Minha mãe, semanas antes de morrer, disse para minha irmã que “quando acontecesse”, ela queria que vestissem ela com um traje tal. Foi muito bom, pois soubemos o que vestir nela. Outra vez, numa reunião com familiares, ela disse: “Vamos comemorar estarmos juntas antes que eu morra.” Comigo, dias antes dela morrer, ela, que sempre foi muito religiosa, me disse: “Acredito que eu vá para um lugar bom quando partir.” Foi difícil ouvir, mas foi o momento que ela encontrou para falar. Eu não podia, nem deveria me esquivar deste momento. Seria importante para nós dois. Eu respondi: “Com certeza. O que a senhora quer falar sobre a sua partida?” (o ideal é usar as palavras que a pessoa está usando). “Eu estarei do seu lado até você partir e quando você partir, vá, que eu e todos ficaremos bem aqui. Sentirei saudades, mas sei que a senhora estará bem e, sabendo disto, estarei bem. A senhora vai estar com todas as pessoas que já amou e que não estão mais aqui. Nós nos encontraremos um dia.” Percebi que foi um grande alívio para ela e muito bom para mim. Até hoje lembro como um dos principais diálogos que tivemos.
É difícil falar sobre a morte? Sim, com certeza é. Mas o silencio ainda é muito pior. Porém, assim como não deve ser negligenciado ou mascarado, também não pode ser forçado. A pessoa mais interessada, no caso o idoso, precisa estar querendo falar sobre o tema, a fim de poder falar de forma natural, sem medos ou constrangimentos. Todos idosos que precisam falar sobre isto sentem-se muito confortáveis e realizados por terem delineado o desfecho de sua história de vida.
*Cuidados Paliativos é uma prática realizada pela equipe de assistência a saúde do indivíduo que apresenta a finitude da vida próxima, seja por doença ou pelo próprio envelhecimento, em que irá se tomar todas as medidas possíveis para evitar sofrimentos de ordem física, mental, emocional e espiritual, não sendo instalado medidas terapêuticas consideradas fúteis (como por exemplo, colocar um indivíduo com câncer terminal a respirar por aparelhos num leito de UTI), considerando a morte um evento natural, sem fazer nenhuma medida para abreviar o tempo de vida aqui na terra (o que é crime, denominado eutanásia), amenizando qualquer sofrimento possível que este indivíduo (e seus entes queridos) possam passar, durante seu tempo de vida aqui.